Houve tempo em que a advertência "perigo de vida" não causava estranheza. Isso foi no século passado. Depois, alguns sábios mais críticos começaram a criticar, porque eram críticos, a aparente contradição entre as palavras "perigo" e "vida"; consideravam que vida jamais poderia ser apontada como perigo porque não constitui risco, coisa óbvia, mas um bem inestimável, daí o condenável contrassenso, diziam.
Diante disso, começaram a recomendar que se desse mais atenção ao significado das palavras e se corrigisse a advertência vista em caixas ou torres de correntes de alta tensão ou na travessia de linhas férreas.
Deveria ser a seguinte a redação da advertência: "Perigo de morte". Sim, porque o distraído incauto que tocar em fios de alta tensão ou for apanhado por um trem enfurecido corre o risco de perder a vida terrena e ganhar a vida eterna antes da melhor hora, se houver alguma. Corre o risco morrer. Perigo de morte, portanto. E assim passaram a recomendar os estudiosos das boas letras, embora um tanto conservadores. E assim dizem os locutores da TV Globo quando apontam o perigo de alguma coisa: medicamentos falsificados, cruzamentos, tiroteios, alguns desses políticos soltos por aí. Coisas assim. Para a Globo e para vários jornais, portanto, é risco de morte ou perigo de morte.
Mas eis que depois surgiu uma nova leitura dessa velhíssima advertência. Ela passou a ser feita por sábios especialistas em explicar e justificar fenômenos linguísticos.
O fato é que uma das interpretações, levemente aventureira, considera estar subentendida a expressão "perder a" antes de vida. Assim: "Perigo de (perder a) vida". Donde se conclui que a tabuleta "Perigo de vida" está muito bem como sempre esteve e pode continuar assim para sempre como advertência para os muitos perigos desta vida inglória.
Semântica
Alguns dizem que "perigo de vida" leva todo jeito de ser um idiomatismo ou idiotismo, uma dessas expressões próprias de um idioma e refratárias a análises de qualquer tipo. Quem quiser ficar com as interpretações acima pode ficar à vontade. Mas convém prestar atenção ao que bem diz J. Mattoso Câmara Jr. em seu Dicionário de Filologia e Gramática a respeito de idiotismos. São "construções vocabulares e frasais que não se prestam a uma análise satisfatória na base dos valores atuais da língua, porque resultaram de fenômenos de analogia e atração, e só se explicam à luz da história da língua; são especialmente dignos de nota os idiotismos locucionais, cuja significação não decorre dos vocábulos componentes e da sua articulação sintática". E exemplifica: dar as da Vila Diogo, chorar pitanga.
Isso quer dizer, obviamente, que não adianta analisar ou somar o sentido de cada um dos vocábulos que compõem a expressão "risco de vida" para obter o significado final. Enfim, o significado de uma expressão como essa não constitui a soma dos significados das palavras.
O Houaiss dá como exemplo de idiotismo "estar com a cachorra", que significa estar irado. E o Aurélio explica idiotismo como "sequência de palavras que funcionam como uma unidade". Exemplos: ficar a ver navios; acabar em águas de bacalhau. Idiotismo indiscutível é o infinitivo flexionado, estranho a outras línguas que não o português e, parcialmente, o húngaro.
Definições
No entanto, talvez "perigo de vida" não seja propriamente um idiotismo clássico porque, trocado um dos termos, ele passa a fazer sentido para atender aos escravos da lógica, sem discussões de natureza racional. Isto é, trocando-se a palavra "vida" por "morte", o que significa "corrigir" a expressão, de acordo com certa interpretação, obtém-se o sentido original sem o tal contrassenso: perigo de morte passa a ter o significado original de risco para a vida.
Essa possibilidade de "correção" do sentido pela troca de um dos termos não ocorre nos idiotismos citados como exemplo por Câmara, pelo Houaiss e pelo Aurélio. Pode-se fazer qualquer arranjo com as expressões "dar as da Vila Diogo", "chorar pitanga", "estar com a cachorra", "ficar a ver navios" que não se conseguirá aproximá-las do sentido com que nasceram. Então por que não reduzir a advertência "perigo de vida" ou "risco de vida" a uma só boa e sumária palavra: "PERIGO"?
Essa advertência sintética iria bem na porta de nossas casas legislativas. E também das executivas e judiciárias. Então seria bom enriquecer o aviso: "PERIGO! CUIDADO!". Ou: "CUIDADO COM A CARTEIRA!". A escolha é sua.
Josué Machado é jornalista,autor de Manual da Falta de Estilo (Editora Best Seller)
Fonte: http://revistalingua.uol.com.br/textos.asp?codigo=12139
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